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quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Chapter III - Work

5:43h
Isso significa que o relógio vai despertar mais duas vezes ainda, uma as 5:47h e outra as 5:51, que é a hora de levantar... Sempre tive mania de colocar horário quebrado no despertador, desde pequeno, minha irmã falava que eu devia ter algum problema, na verdade ela não sabia, mas eu tinha vários.
Continuando com meu algoritmo matinal, levanto, coloco roupa de malhar e desço para a academia do condomínio, não tem muito equipamento mas não preciso me locomover, o que é ótimo, teria que acordar quase uma hora mais cedo se quisesse freqüentar uma academia fora, e para quem me conhece sabe que sono é sagrado para mim.
Para minha surpresa, a Júlia chegou à academia 5 min depois que eu – Com uma cara de sono tão ruim quanto a minha, mas essa é vantagem das mulheres, mesmo assim ela estava bonita. Coincidência? Talvez.
- Bom dia Júlia, caiu da cama hoje?
- Bom – Um bocejo – dia Bruno, como é que o senh... você está?
Ela sempre me chamava de senhor, eu sempre reclamava, ela dizia que era porque estava acostumada a chamar os clientes de senhor, normas da loja, salvo quando o cliente pedia o contrário.
- Bom mesmo, pensei que ia ter que executar aquela cláusula do nosso acordo.
- Ah, é mesmo, tinha até me esquecido, mas não vai ser dessa vez...
Ela sempre me chamava de senhor, daí combinei com ela que cada vez que ela me chamasse de senhor ela teria que me pagar um lanche, na verdade quando falei isso esperava que ela me chamasse de senhor na mesma hora e me encarasse com os olhos cerrados com aquela expressão de quem fez de propósito, isso nunca aconteceu, mas pelo menos valeu a tentativa e a diversão.
- Mas me diga, eu venho aqui todos os dias nesse horário e nunca vi você, resolveu malhar agora?
- É, na verdade foi a dona Maria que ficou me atazanando, dizendo que eu andava muito sedentária, mas poxa, eu já trabalho de pé o dia inteiro, por isso fico cansada de noite... Mas ai ela veio falando que eu ficava cansada porque não fazia nenhuma atividade física, e tinha que ser logo cedinho para funcionar.
Dona Maria, ela sabe que eu venho aqui esse horário, quando chegar em casa vou descobrir se ela armou de propósito ou foi apenas coincidência.
- Olha, eu concordo com a dona Maria, atividade física sempre é bom, eu sinto falta de praticar algum esporte, mas malhar pelo menos me deixa mais disposto, você devia continuar, além do mais que é sempre bom ver um rosto bonito, aqui só dá velho pela manhã...
Ela corou, colocou um sorriso no canto do rosto e abaixou a cabeça enquanto me olhava com o canto do olho, adoro expressão corporal, dizem mais que muitas palavras, mas nesse caso era diferente, apenas uma diversão.
6:50h
Minha rotina de 45 minutos de exercício completa, voltar para casa, tomar banho e café, também aproveitar para conversar com a dona Maria sobre a visitante de hoje na academia.
Eu gosto de tomar banho bem quente, depois no final, antes de sair, eu abro bem o chuveiro e a água fria com pressão batendo no corpo, é ótima a sensação, parece que revigora as forças.
Quando me troquei dona Maria já estava com a mesa pronta, e ainda de costas, enquanto lavava alguns itens na pia falou:
- Bom dia, como foi à academia hoje? Alguma novidade?
- É dona Maria, depois pergunta por que te chamo de Maria, a louca...
- Ah, sempre achei que vocês fariam um ótimo casal, sem contar que na atual situação dos dois, a fase da vida que se encontram, um faria um bem enorme ao outro!
É o que muitos dizem, é quase um contrato, os dois se beneficiam então deveriam ficar juntos, eu não concordo com isso, porque ela pode até estar certa de começo, mas depois que sentimentos entram na situação, tudo fica mais complicado, e a Júlia é uma boa menina, não merece sofrer por um cara que não gosta dela o suficiente.
- Eu já te disse que gosto muito da Júlia, mas só como amigo, nunca daria certo, ela escolheu uma vida diferente da minha, e espero que seja feliz, um não suportaria certas escolhas que outro fez, nunca daria certo.
- Ah, você sempre usa a mesma desculpa, às vezes me pergunto se você é tão inteligente assim mesmo como todo mundo diz! Você se preocupa de mais e esquece de ser feliz, se não der certo, não deu, pronto! E quanto ao fato dela sofrer, você não pode ser egoísta ao ponto de não permitir que as outras pessoas não cometam seus próprios erros, afinal de contas, como foi que você aprendeu? As pessoas também tem que errar para aprender, sabia? Você não é tão diferente quanto se julga ser, você é normal como qualquer um outro, talvez um pouco mais esperto, mas é só.
Vez ou outra ela faz isso, desembesta a falar e me dá um sermão, não gosto muito disso, mas sei que ela fala de coração porque gosta de mim, esse é o único motivo dela falar, querer o meu melhor, igual mãe, então nunca me chateio.
- Seja honesta comigo então, a senhora está armando para cima dos dois ou já sabe algo da parte dela?
- Por quê? Se eu souber você vai tentar?
- Não foi isso que eu disse, só quero saber, sou curioso, sabe?
- Não, não sei de nada da parte dela, mas posso dar umas indiretas...
- Vamos fazer isso, se ela continuar na academia, quem sabe depois de uns dias as coisas não aconteçam naturalmente com os dois se falando todo dia?
- Aiai, você sempre escolhe o método natural, assim é muito lento!
- No final sempre dá certo, não dá?
- Ok, ok, e anda logo que senão vai chegar atrasado! Você é chefe e tem que dar exemplo!
- Ok, beijão e bom dia!
- Tchau querido.
Eu já falei que a dona Maria é fantástica? Gosto muito mesmo dela.
Hora de ir trabalhar, trânsito leve hoje, não vou demorar mais que quinze minutos, perfeito!
Eu tenho minha própria empresa, trabalho com computadores, desenvolvo softwares, tenho alguns aplicativos com clientes fixos e vivo criando coisas novas. Eu trabalho no setor de criação, mas tenho uma equipe pequena que passa o dia todo fazendo atualizações nos trabalhos antigos, tenho nove funcionários e um estagiário.
No meu trabalho funciona assim, trabalho no mínimo oito horas por dia, no máximo dez, salvo exceções. Vi uma vez em um filme um cara que dividia o dia em unidades de tempo, eu gostei disso, cada unidade de tempo minha tem 30 min, minha meta é gastar no máximo duas em cada atividade. Foi difícil explicar isso para minha secretária, primeiro ela não entendia, depois me achou louco, mas depois aceitou, não queria alguém nem muito velho nem muito novo na posição, acabei optando pela Laura, 32 anos, mãe de dois filhos, um de nove e outro de onze anos, dois meninos levados, assim como todos deveriam ser, ótimas crianças.
- Bom dia Bruno, reservei sua unidade livre logo pela manhã para o senhor se preparar para uma reunião com aquele novo cliente, ele vem as 8:30h, duas unidades para a reunião?
- Bom dia, ótimo, não sei o que faria sem você Laura, já está começando a prever meus movimentos, você não sabe programar não?
Ela riu e virou as costas, eu poderia usar alguém como ela na minha equipe, perco mais tempo explicando minhas idéias do que trabalhando com minha equipe, mas mesmo assim ainda acho ela muito boa na função dela.
Adoro essas reuniões, cliente novo, eu entro na sala apenas com uma lapiseira e um bloco de folhas sem pauta, o cliente vai falando e eu vou escrevendo, no final tenho um esboço, que vou acertando até chegar em algo de agrado do cliente, sempre tento escapar dos meus softwares prontos, porque o que eu gosto mesmo é de criar.
Não faz sentido eu explicar a reunião aqui, mas tudo foi bem, consegui o serviço e o cliente saiu animado do escritório, nem todos saem assim.
- Laura, chame o Ricardo para mim, por favor.
O Ricardo é meu homem de confiança aqui dentro, conheci ele no metrô cinco anos atrás, ele estava lendo um livro didático e eu estava querendo comprar o livro, perguntei se era bom, e puxamos assunto. Encontramos-nos um ano depois em uma licitação de lados opostos, montamos um consórcio e ganhamos juntos, ele era funcionário da empresa dele, então chamei para vir trabalhar comigo. O serviço dele é basicamente ser meu amigo, sempre que travo em um “dead-end” é com ele que converso para abrir minha mente, ele é o único que trabalha comigo na criação, mas ele também realiza trabalho técnico.
Hora do almoço, sai para almoçar com o Ricardo, e no restaurante que fomos tem um sistema de fidelidade, toda refeição você ganha uma carimbada em um cartão, doze carimbos valem um almoço grátis, hoje completei minha cartela, isso significa que o Glauber acabou de ganhar um almoço grátis.
Hoje também é o aniversário do estagiário, happy hour por minha conta, a galera fica feliz, eu ganho moral, todo mundo sai no lucro. Somo todos muito próximos aqui na empresa, procuro conversar e ser amigo de todos, acho que conduzo bem a situação, mas sei que se estive fazendo algo errado também serei o ultimo saber, espero que esteja certo sobre estar conduzindo bem a situação.
A Laura nunca vai para o bar, mas ninguém reclama, é a única casada e que tem filhos, todos são solteiros, o estagiário quando entrou tinha namorada, mas não durou muito, mas desconheço os motivos. Dez homens em um bar, tudo bem que eu não bebo, mas quando entra álcool na história, pode ter certeza que vamos falar muita bobeira, vai ter um ou outro procurando azaração e todo mundo vai estar de ressaca amanhã, em plena quinta-feira, mas faz parte.
17h
Isso significa que acabo de entrar na minha ultima unidade de tempo do dia, nada que eu comece agora vou conseguir terminar, quando acontece isso eu dou uma volta pelo escritório, sempre tem um querendo conversar, e quando digo conversar, não falo só de jogar papo furado, ainda que as vezes eu faça isso, mas normalmente eu dou uma volta e olho para cada um em sua divisória, parecem abelhas operárias. Abelhas operárias porque o layout do escritório tem divisórias que montam duas mesas hexagonais, igual uma colméia, dizem que é o ambiente de trabalho mais otimizado que existe, ainda que não se aplique ao meu ramo, gostei da piada, chamamos o Jorge de zangão da colméia, porque ele sempre está bravo, ainda que isso não tenha nada a ver com o significado real da palavra, pois o zangão não trabalha, totalmente diferente do Jorge.
Eles já me conhecem, sabem que podem confiar em mim, então quando precisam conversar apenas esperam que eu olhe e me olham de volta, me chamam com os olhos. É interessante que esse é um código que todos nós usamos, mas nunca combinamos.
E olha lá se não é o Pedro com quem eu vou conversar hoje... Sabe aquele aluno quando está colando que fica olhando para o professor e nem pisca, daí quando o professor olha ele desvia o olhar? Mais ou menos o que o Pedro está fazendo agora, aposto que ele fez algo errado e está com medo que eu descubra, como se eu fosse do tipo bravo.
- E ai Pedro, como é que vai?
- Bem... BEM! Chefim...
Eles me chamam de chefim, com exceção da Laura e do Ricardo que me chamam de Bruno, eu costumo dizer que não tendo intenção de ofender pode chamar do que quiser...
- Aconteceu alguma coisa? Parece meio estranho...
Não que o Pedro seja o tipo de pessoal normal, ele poderia ser o logotipo da empresa, sabe aqueles caras que quando você vê já enxerga um nerd? Falta apenas colocar um suspensório, já usa óculos, aparelho nos dentes e camisa xadrez, mas é um grande profissional. O Pedro também é o atrapalhado da turma, o pessoal apelidou ele de Murphy por aqui, pois se uma coisa pode acontecer errado certamente vai acontecer com ele, o que faz com que seja bom sair com ele, pois você sabe que nada vai acontecer com você, ele é quase um pára-raios de acidentes.
Eu lembro de uma vez que fomos jogar bola, ele foi beber água, daí pegou uma daquelas garrafas d’água de 1,5 litros e foi encher o copo, mas quando foi beber prendeu a garrafa debaixo do braço, quando foi dar o ultimo gole inclinou a cabeça de mais e acabou abrindo um pouco o braço, derrubando a garrafa no chão. Quando foi pegar a garrafa do chão e a ergueu, viu que o fundo tinha partido com a queda, e estava vazando toda a água, para evitar que vazasse tudo ele virou a garrafa de cabeça para baixo, mas ele tinha esquecido de colocar a tampa na garrafa, e continuou derramando a água e não percebeu, quando começamos a rir ele reparou e tomou um susto, inclinando um pouco garrafa d’água e molhando todo a camisa e shorts na altura da cintura, dando a impressão de que havia mijado nas próprias calças. Uma cena fantástica, que só poderia ter sido protagonizada pelo nosso amigo Pedro, qualquer outra hora eu conto um nova história dele, ele possui várias.
- Nada não, tudo em ordem.
Eu quase pude ver a saliência na garganta dele engolindo a saliva como se tivesse passando uma pedra por ali. Os olhos arregalados com as pupilas levemente dilatadas e as sobrancelhas retas, sem contar que ele mexia os braços como quem arruma a mesa, mas parecia que tinha acabado de ter uma paralisia e seus braços estavam duros, eu dei uma risada de leve, como aquelas que agente dá quando se lembra de uma cena engraçada, o garoto é uma comédia, ele tem 24 anos e trabalha comigo desde o ano passado, era meu estagiário antes.
- Tem certeza? Absoluta?
- Ah, então, eu estou fazendo aquelas atrapalhadas de novo, não tô? Igual cachorro quando faz bagunça e se entrega sozinho?
- Yeap!
- Então, queria dizer que foi sem querer, eu jamais teria feito isso de propósito, o senhor sabe que eu levo o trabalho a sério e...
- Desembucha rapaz, fala logo o que aconteceu, que eu não consigo mais ficar sério, fale antes que eu comece a rir... E o Senhor sabe que você é um bom menino, aposto que você faz todas suas orações e Ele vai ser generoso com você.
Tinha certeza que vinha mais uma daquelas atrapalhadas.
- Hã, me desculpa, esqueci que não gosta que chame que eu te chame de senhor, isso também não vai mais acontecer.
- Trinta segundos para falar antes que eu chame a atenção de todo mundo e faça você contar na frente de todos...
- Ah, sim, ok, pois bem, como ia dizendo, aconteceu o seguinte, eu tenho esse amigo Marcelo, da época da faculdade, uma figura o moleque, você ia gostar dele, tenho certeza, ele até mandou um currículo aqui uma vez, talvez você se lembre dele.
- Pedro! Foco Pedro, foco!
- Ah, desculpa... então, o Marcelo, ele sempre me manda e-mails, e hoje ele mandou um e-mail assim, eu até encaminho para você caso você queira ver para saber que eu não estou mentindo.
Ai, eu odeio quem fica rodando em torno de uma história e se prende a fatos insignificantes para a história principal, mas sempre fui cercado de pessoas assim, minha mãe é um exemplo, detalha até a cor da camisa da prima da vizinha da mulher que tava na rua quando o fato aconteceu.
- Hum...
- Então ele me mandou um e-mail hoje de manhã, e como sempre, quando eu ligo o computador eu abro o navegador e deixo as abas carregando enquanto eu checo meu e-mail, e nisso eu li a mensagem dele, dizia que era para eu checar esses novos sites de stream de vídeo, desses que carregam no site e não tem que baixar para o computador, tinham três links, eu nem li, apenas mandei abrir os três em novas abas do navegador e continuei a ler os outros e-mails, mas daí que aconteceu, quando eu mudei as abas, eram três sites de vídeo pornô...
Eu sabia, tinha que ser uma atrapalhada daquelas... Eu já estava gargalhando essas horas.
- Eram bons os vídeos pelo menos?
- Ah, não sei, eu nem vi, fiquei desesperado, quando vi aquele sacanagem, tinha muita gente em cima da mesma cama, nunca tinha visto daquilo, sem contar que apavorei, apertei todas as teclas tentando fechar o vídeo, mas você sabe que quanto mais desespero agente fica menor parece ficar o botãozinho de fechar a janela, mas eu acho que ninguém viu não.
- Bom, ninguém reclamou até agora.
- Eu estava com medo de você ter visto no histórico do servidor e achar que eu estava acessando esses sites daqui do serviço. Bom na verdade eu acessei, mas foi sem querer.
- Relaxa rapaz, foi sem querer, mas cuidado da próxima vez, se alguém tivesse visto isso, principalmente a Laura, poderia gerar um constrangimento muito grande em ambas as partes.
- Ok chefim, isso não vai acontecer de novo não, hehe.
Lógico que eu não ficar por ai, voltei para meu escritório e entrei no log do servidor e vi que horas o site foi acessado, 8:13h, daí fui no arquivo das filmagens de segurança e olhei a filmagem do horário, queria ver a reação dele. Foi muito engraçado, sabe quando alguém cai na rua e levanta rapidinho olhando para os dois lados procurando se alguém viu a cena? Foi quase isso, só que ele olhava freneticamente para os dois lados checando se alguém tinha visto o site no monitor dele, somados ainda as mãos que tentavam fechar o vídeo, ele ficava com a mão esquerda apertando repetidamente o quer parecia ser Alt+F4 enquanto a mão direita parecia boba, não sabia se ia para o teclado ou para o mouse, em uma indecisão cômica, mais uma atrapalhada para a coleção do Pedro.
Fim do dia, pelo menos dia de trabalho, agora é juntar a galera e ir para o bar comemorar o aniversário do estagiário, coisa rápida, afinal de contas ele vai comemorar com a família e outros amigos mais tarde ainda, até me convidou, mas apenas por educação, disse que tinha outros compromissos, seria chato aparecer em um evento cheio de amigos dele e deixar ele preocupado em me dar atenção por ser o chefe no lugar de se divertir com a galera.

Chapter II - Algorithm

Chegar em casa no final do dia é quase uma cerimônia, uma rotina, mas eu prefiro o termo algoritmo, nunca muda muita coisa, é sempre uma seqüência lógica (não tão lógica assim). Eu deixo o carro no estacionamento do condomínio e vou até o elevador, tenho uma ótima vaga, são apenas 11 passos até o elevador, eu moro no oitavo, meu prédio possui doze andares. Chego no meu piso e são mais 9 passos até a porta, moro em um loft, sempre quis um, mas pelos preços nunca achei que conseguiria comprar, mas as coisas sempre aconteceram comigo, e eu sempre acreditei que se as coisas tinham dado certo até agora não tinha o porque pensar que elas iriam parar de dar certo. Profissionalmente, eu diria tudo certo, e no resto... bom, no resto eu vou explicando aos poucos.
Quando abro a porta já pego meu controle universal que fica preso na parede ao lado da porta, parece brincadeira, eu lembro que quando era mais novo vi um filme que um cara tinha um controle desses que ele podia controlar o tempo e as pessoas, o meu não faz tudo isso, mas parece um palm, nele eu controle luzes, som e segurança. Passo pelo canto de trabalho e deixo minha maleta e ligo meu notebook pessoal, falo que ele é pessoal porque tenho um na maleta para trabalho e um em casa para o resto, melhor dividir certas coisas, não quero correr o risco de expor certas coisas pessoais minhas. Tiro minha camisa e penduro no cabideiro, sento no banquinho ao lado e tiro os sapatos, volto ao computador e abro o navegador com suas milhares de páginas carregadas da ultima sessão. Vou direto para o banheiro e tomo um banho, só coloco cueca e roupão, nada como estar em casa e poder andar livremente. Passo pela geladeira, vejo o que a Dona Maria deixou para mim – Depois falo mais sobre essa senhora fantástica que é um anjo na minha vida – e coloco para esquentar, volto ao notebook e vejo minhas principais notícias, quando o microondas apita é hora de comer, nesse ponto meu algoritmo termina, mas essa primeira parte se repete todos os dias.
Hoje eu cheguei em casa mais tarde que o normal, costumo chegar as 19:30h em casa, agora já é 22h, por conta do tempo que perdi no consultório e o tempo que passei conversando com o Glauber, mas vamos agora falar da D. Maria, a louca! Ela sempre ri quando eu a chamo assim, ela mora no primeiro andar, professora de história aposentada, tem seus 56 anos, aposentou ano passado e bateu na minha porta, disse que tinha me observado no ultimo ano, e que um rapaz da minha idade precisava de alguém para tomar conta, e como viu que não tinha mulher rondando pela minha casa, ia arrumar minha casa e uma namorada para mim, muito simpática.
Ela realmente me ajuda, chega em casa antes de eu sair já com pãozinho quente, normalmente quando estou me vestindo escuto o barulho da porta batendo. Ela também fica em casa e arruma tudo, ela que colocou o cabideiro e o banquinho no cantinho estratégico, pela manhã ela mesmo já recolhe minha roupa e sapato do dia anterior e deixa tudo pronto para o dia seguinte, também faz o almoço dela e come aqui em casa mesmo, do que sobra leva um pouco para o jantar dela e deixa um pouco para minha janta. É fato que ela me acostuma mal, e tudo fica mais fácil para ela, mas ela mora sozinha, viúva a mais de dez anos, e o único filho nunca dá as caras, temos nossos momentos de descontração pelas manhãs. Ela recebe um bom salário, mas vivo dando presentes, não deixo faltar nada nem aqui nem na casa dela, uma vez por mês vamos fazer compras juntos, a minha e a dela, e sempre arrumo uma desculpa e acabo pagando as duas.
A vizinha da D. Maria sempre fala que eu sou um anjo, que morria de medo que um dia ela pudesse cometer suicídio porque vivia muito triste morando sozinha, que só tinha os alunos, e quando se aposentasse não teria mais nada, que eu ter dado um emprego salvou a vida dela. Quanta bobagem. A D. Maria é uma pessoa inteligente, independente, ela não precisa do dinheiro, não precisa da atividade, o que faltava era alguém para conversar, um amigo, e a própria vizinha poderia ter feito isso, e agora acha que eu fiz muito, mas a maioria das pessoas pensa assim, ficam esperando por coisas milagrosas quando simples detalhes podem fazer toda a diferença.
Mas eu nunca destrato a D. Fátima, a vizinha da D. Maria, ela tem uma filha de 23 anos muito bonita, desde que terminou o ensino médio trabalha em uma loja de roupas no shopping, sempre que me vê diz que está estudando para o vestibular, e eu sempre ofereço ajuda, mas no fundo sei que ela nunca estuda, e eu sei que nunca vou ajudar, as palavras são trocadas apenas para poder flertar, e os dois se sentirem valorizados, puro instinto animal, e por mais que eu sempre engrandeça o instinto racional, eu amo flertar, porque o desconhecido é fantástico, você imagina e põe a forma que você quiser, a partir do momento que sai do flerte e vai para o próximo passo, você ganha muito benefícios, mas também passa a conhecer os defeitos da pessoa, e muitas vezes isso tira o encanto. Mas a Júlia ainda está na minha lista, qualquer dia eu chego nela e obrigo a coitada a estudar, ela merece seu lugar ao sol, todos merecem.
A verdade é que a Júlia também livra minha cara com minha família, da ultima vez que meus pais vieram me visitar eles viram a troca de olhares entre nós dois, quando minha mãe perguntou: “– Quem é essa? Bonita...”, eu vi ali minha oportunidade. Fiz o que sempre fiz com minha família, escondi meus sentimentos, coloquei falsos indicadores para fora e fiz ela acreditar que tudo estava bem, fiz aquela cara que todo mundo reconhece quando vê, de que tem mais ali do que realmente está falando, eu deixei a boca reta tentando suprimir um sorriso que surgia de apenas um lado do rosto enquanto levantava uma de minas sobrancelhas serrando os olhos, perfeito, pelo menos aos olhos destreinados da minha mãe, ela disse: “–Ah, sabia que tinha visto os dois trocando olhares!”, é claro que eu disse que não tinha nada, enquanto forçava uma risada sem graça, e ela disse que acreditava em mim, que já tinha visto muito desse “nada” no mundo, mas que fingia que tava enganada. E realmente estava.
Esse problema com minha família é porque eles acham que tem algo de errado comigo, tenho 27 anos, bem sucedido profissionalmente, tenho minha própria casa – uma bela de uma casa, diga-se de passagem –, um carro que é o sonho de consumo de muito gente, sou inteligente, educado, calmo... Como é que posso estar solteiro? A resposta é bem simples: eu sou defeituoso.
Defeituoso, palavra que pode passar uma conotação negativa, mas que eu aprendi a gostar com o tempo. Nós vivemos em um mundo cercado por padrões, a diferença entre a loucura e a genialidade é apenas a margem de sucesso, e é puramente nisso que eu acredito. Vamos falar sobre moda, a diferença entre o brega e o bem vestido é apenas a opinião pública, pois o que já foi moda pode ser brega nos dias de hoje, e para mim defeituoso é quase isso, o mundo possui um padrão, qualquer coisa fora da margem de erro desse padrão é considerado defeituoso, assim como eu.
Eu tenho conceitos que não consigo quebrar, e outros que quebro muito fácil. Eu possuo uma posição de poder, sou dono de uma empresa que cresceu abruptamente nos últimos anos, sou sério, educado, inteligente. Isso faz com que vez ou outra garotas se iludam por essas características e se interessem por mim, é claro que pretendo encontrar alguém um dia e serão essas características que vão atrair minha parceira, mas ao mesmo momento, não posso dar falsas esperançar a essas meninas, não posso bagunçar com a vida delas, porque não é legal, eu tenho uma irmã, ela é casada e tem uma filha linda de 3 anos, se algum palhaço aparecesse com falsas promessas para ela e se aproveitasse da situação, eu mataria o cara, e não é só porque minha irmã já casou que eu posso aprontar agora. Se eu não tenho intenção de nada sério com a garota, não tem o porque de eu fazer ela gastar o tempo comigo, porque eu já sei o final, ela sofre, eu fico com fama de babaca, quando na verdade, ela que não quis escutar o que eu disse desde o primeiro dia, que não daria certo. Mas minha mãe não entende isso, ela acha que eu tenho que arrumar uma namorada, como se fosse simples gostar de alguém.
Esse tem sido meu dilema desde que era adolescente, verdade que tive algumas namoradas, a primeira foi bem sério, quase três anos, depois a próxima durou seis meses, depois três, e desde então nenhuma passou do terceiro encontro. Isso preocupa minha família, mas minha mãe não tem culpa, é função dela se preocupar com essas coisas, senão não seria uma boa mãe. Às vezes quase me convenço de que nasci para ficar sozinho, isso me chateia, porque isso é ruim, muito ruim, mas é uma condição que não depende muito de mim, posso me esforçar, mas a pessoa certa não faz anúncio no jornal. Tudo isso começou no ginásio, acho que estava na oitava série, tudo aconteceu muito natural, e quando menos esperava, já percebi que era defeituoso, a minha maior duvida talvez seja como cheguei nessa condição, será que escolhi e busquei, sempre fui, ou estava simplesmente fadado a isso?
Começou quando eu entrei na igreja, achei que tinha achado minha salvação, não falo de salvação espiritual, falo de rumo na vida, achei que finalmente tinha encontrado pessoas semelhantes a mim, com os mesmo ideais, doce ilusão...
Eu prestava atenção nos cultos, na escola bíblica, mas reparava que meus amigos ficavam conversando e mandando bilhetinhos, não entendia, porque quando não queria ouvir simplesmente faltava e ficava em casa jogando vídeo game, muito mais simples e prático. Acho que é isso que acontece quando seus pais te obrigam a ir a algum lugar, no meu caso meus pais não freqüentavam a igreja, eu ia sozinho, por opção, algo estranho para um garoto que dez anos de idade, mas eu achava normal, e meus pais sempre incentivavam apesar de não irem.
Passei a acreditar que tinha tido uma ótima educação, pois não tinha um ensinamento que já não me fosse familiar, na verdade era tudo um tanto óbvio, não sei por que alguém perdeu tanto tempo escrevendo tantas regras, não é um tanto óbvio que não devemos fazer inimigo? Que devemos ajudar ao próximo e que não é legal matar ou roubar? Mas com o tempo vi que isso não era tão obvio para todos, daí saquei porque escreveram tudo aquilo.
Quando estava na oitava série que começou a ficar mais claro que eu era defeituoso, já não concordava muito com as idéias dos meus amigos, mas apesar de não quererem ser com eu, sempre buscavam meus conselhos quanto estavam com problemas, virei meio que conselheiro da galera, e já era o líder intelectual da turma, tirava as melhores notas e sempre ajudava quem precisava, quando percebi já era um lidar natural na sala de aula, achava isso o máximo, tinha o respeito de todos, inclusive de alguns professores, achava isso muito bom, mas ainda não tinha noção das responsabilidades que isso me traria, mas foram bons tempos, tenho saudade deles.
Tudo fica mais difícil quando você vai ficando mais velho, o pessoal como a ter mais acesso a bebidas e drogas, muitos experimentaram, alguns pararam, alguns se perderam, e uns poucos aprenderam a administrar e vão seguindo a vida. Eu lamento por todos eles, mas essa é a minha opinião, muitos lamentam por mim também. Fato é que com mais problemas, cada vez mais pessoas me procuravam.
Eu nunca soube ao certo o que eu tenho, mas hoje em dia é assim, eu chego em um ambiente novo, com poucos dias as pessoas começam a se aproximar e começam a falar sobre a vida delas, talvez eu passe confiança, mas nem eu confio em mim mesmo as vezes, é muito estranho isso. É legal fazer parte da vida das pessoas, mas confesso que certas coisas eu preferia não saber, ainda mais porque não posso fazer muita coisa, só posso ouvir. Teve uma época que eu dava conselhos, hoje em dia já não faço mais isso, afinal de contas, quem sou eu para decidir o que alguém deve fazer? E isso é parte do meu problema com as mulheres.
A primeira vez aconteceu na oitava série, Clarissa era o nome dela, minha melhor amiga, mas amiga de classe, nem nos falávamos fora da escola, até que as coisas mudaram um pouco. Sabe quando você é novo e está apaixonado e acha que o mundo vai acabar quando o namoro acaba? A Clarissa passou por isso, ficou depressiva, eu achava exagero para uma menina de 14 anos, o cara era mais velho, tinha 18, e arrumou uma namorada mais velha porque viu que do namoro com minha amiga não ia rolar nada mais físico tão cedo, e o desgraçado ainda falou isso para ela. Eu lembro quando ela perguntou se eu queria estudar na casa dela, eu fui, ingênuo que sou, ou era pelo menos, e naquela tarde conversamos muito, mas estudo não foi o tópico principal da conversa, pelo menos ela não foi muito bem na prova. A Clarissa era bonita, simpática, amiga, daria uma ótima namorada, teria apresentado aos meus pais e tudo, mas foi nesse momento que eu criei um daqueles conceitos que eu não consigo quebrar, eu não consigo mudar de rumo no meio de uma manobra, se chego com intenção de ajudar como amigo, fico como amigo até o fim, isso atrapalha as vezes. Eu vi a Clarissa chorar, e senti raiva do cara, a minha vontade era de quebrar a cara dele, vontade essa que passava logo, nunca briguei, sempre achei melhor conversar do que partir para o físico, é isso que nos separa dos outros animais. Mas quanto mais ela chorava, mas vontade eu sentia de fazer alguma coisa, e eu só abracei ela, e não disse nada, não disse que ia melhorar, mas falei que muitas vezes antes de melhorar as coisas tem que piorar antes, e eu acredito nisso. Conversamos muito naquela tarde, nos aproximamos ainda mais como amigos, e no final do dia ela já estava dando gargalhadas das bobeiras que eu falava, me senti feliz, e acho que ela também.
Mas como sempre, alguma coisa acontece para atrapalhar, e ela veio com uns papos estranhos, e sabia exatamente o que ela queria, mas eu não gostava dela, não da forma que ela estava gostando de mim, mas até então, ninguém ligava para isso, ainda mais na idade que eu tinha, mas considerava abuso meu ter me aproveitado da situação que ela se encontrava. Meus amigos me chamaram de trouxa, minhas amigas acharam que eu tinha me aproveitado e depois pulado fora, eu não achava nada, só me sentia mal.
A Clarissa seguiu em frente, e eu também. Paramos de nos falar, e ela voltou a se apaixonar, e a sofrer, e depois se recuperou, e depois se apaixonou de novo, e assim continuava até a ultima vez que ouvi falar dela.
Situações semelhantes se repetiram, e por isso eu criei regras, o segredo é contato, tempo e profundidade. Nunca toque, nunca gaste muito tempo, nunca entre em detalhes muito profundos. E o mais importante, nunca fale sobre você mesmo. Mas essas regras nem sempre são o suficiente também. É mais fácil com amigos homens, não tenho que me preocupar com esse tipo de coisa, pelo menos nunca passei por nenhum situação constrangedora com um, e prefiro nunca passar também.
Por vezes eu conheço algum garota que está passando por dificuldades, um momento frágil, eu me ofereço para dar suporte, faço o que acho que todo mundo deveria fazer, e não é muito, eu escuto, e faço companhia, e só, mais nada, sem elogios, sem conselhos, sem contatos fisicos, porque sei que o que ela precisa não é um aproveitador, mas um amigo, infelizmente algumas entendem errado e no final das contas acabam confundindo as coisas, confundem minhas boas intenções com segundas intenções, e é por isso que eu digo que sou defeituoso, porque eu não aproveito essas chances. Isso acontece não por eu fazer muito, mas sim pelo resto fazer muito pouco, e o pior de tudo é a fama de sacana que recebo no final, o cara que se aproxima da menina frágil e depois ignora, isso já aconteceu diversas vezes, mas não tenho culpa se as pessoas não entendem. Eu já sofri com isso também, já me aproximei com boas intenções e me apaixonei, e fiquei no prejuízo, mas isso faz parte, ossos do ofícios.
Posso arrumar uma namorada na hora que eu quiser, qualquer um pode, não sou nada especial por conseguir isso, mas não quero dar falsas esperanças a ninguém, principalmente para minha mãe, não quero que ela pense que eu estou um relacionamento sério, e com a minha idade é muito perigoso, porque a maioria pensa que vai dar em casamento. Mas enquanto eu não achar alguém que me compreenda eu vou continuar solteiro, e quando falo em compreensão, falo de alguém que não me faça sentir como se eu fosse defeituoso, pelo menos dentro de casa. Alguém que saiba a forma como eu raciocino, é péssimo acreditar que você é o único do seu tipo, e quando falo único do meu tipo, não estou dizendo que sou melhor ou pior do que ninguém, sou apenas diferente, e sofro muito com isso, mas também não posso deixar as pessoas perceberem isso, porque para fazer o que eu faço eu preciso ser forte, eu ajudo as pessoas, pelo menos gosto de acreditar que realmente faço isso, e ninguém vai buscar ajuda em alguém que julgam fraco, por isso tenho que reprimir meus sentimentos, meus problemas, e vender para o mundo a imagem que o mundo está disposto a comprar.
Eu sei que não sou o cara ideal, e estou muito longe de ser, mas gosto de acredita que se eu observar o suficiente, talvez eu me molde para um cara melhor, evolução, busco isso a todo o momento, mas tenho consciência de que regrido muitas vezes, o que é um ato necessário: uns passos atrás para pegar impulso e depois dar um grande salto para frente.
Mas hora de dormir agora, amanhã é acordar as 6h, ir à academia do condomínio, malhar até as 7h, tomar banho e chegar ao serviço as 8h, outro algoritmo, mas o dia de hoje foi bom, conhecer o menino Glauber valeu o dia.
Acabei de reparar, os detalhes em gesso no teto formam faixas que atravessam o teto de ponta a ponta. Acho que vou mandar tirar. Não, elas ficam bem no teto.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Chapter I - Sleepy

Sono... Sempre sinto sono e durmo quando estou sentado, o problema é que trabalho sentado, dirijo sentado, como sentado e todo lugar que vou alguém me oferece um lugar para sentar. Certo que essas paredes não ajudam, eu não sei quem teve a idéia de que as paredes têm que ter essas listras pintadas de fora a fora, odeio quando entro em um corredor e as paredes têm aquelas listras pintada a meia altura, parece que estou em um corredor sem fim, mas bem, está quase acabando esse martírio, deve estar quase na minha vez, acho que aguento ficar acordado, tem a mocinha bonita na minha frente só, o velho chegou depois de mim.
- Bruno Rodrigues, é o senhor?
Já era hora, os médicos sempre marcam um horário, mas atendem por hora de chegada, horrível esse método, porque sempre tem engraçadinho que marca e chega mais cedo para tirar vantagem, o mundo está cheio desse tipinho, não gosto disso.
- Olá, sou eu sim, já está na minha vez?
- Me desculpe, mas o Dr Fernandez acabou de receber uma chamada de emergência no centro cirúrgico e teve que sair as pressas, o senhor gostaria de remarcar sua consulta para outro dia?
Já sei, eu vou sair do consultorio e, quando chegar no corredor, vou deitar no chão e esperar alguém vir me socorrer, qualquer um que me encontrar deitado vai achar que estou passando mal e vai chamar um médico, assim vou ser atendido rapidinho!
- Bom moça, se não tenho outra opção, vamos logo marcar essa consulta, mesmo horário para semana que vêm, que tal?
- Mas qual dia?
- Mesmo dia.
- Como assim mesmo dia?
- Terça, hoje é terça, mesmo horário terça que vem, tem horário livre?
- Ah, um momento... Humm... Não tem não Sr. Bruno, só vou ter uma hora mais tarde, mas posso lhe contar um segredo? Agente marca as consultas, mas atende por hora de chegada, o Sr pode marcar mais tarde e chegar ao mesmo horário que vai ser atendido da mesma forma!
Interessante, quem administra o sistema oferecendo formas de burlar o sistema, acho que me recordo disso acontecendo em outro lugar... será que eu posso ser espertinho também?
- Ok mocinha, pode marcar então, se der eu chego mais cedo.
- Mais alguma coisa Sr?
- Um lanche, fritas médias e refri médio, que tal?
- Hã?
- Nada, esquece... Só estou com fome...
O pior é que ela não entendeu a piada, acho que já fui melhor nisso, gostava mais quando as pessoas ficavam bravas com as coisas que eu falava, agora elas nem entendem mais! Será que estou piorando ou será que as pessoas estão ficando mais tontas? Isso me preocupa, não importa quem está mudando, o que importa é que estou ficando cada vez mais distante, em breve vai acontecer o inevitável. Isso é triste.
Agora não falta muito e mais um dia se vai: atravessar o corredor sem reclamar das faixas, pegar o elevador e descer, pegar o carro e dirigir até em casa, parece simples.
Para variar, tem um garoto rondando os carros, vai me pedir uns trocados, mas ele nem sabe qual é meu carro, outro absurdo, pago IPVA, seguro obrigatório, seguro do carro, impostos para segurança pública e ainda pago pedágio para dirigir em estradas boas, e no final das contas, ainda tenho que pagar alguém para ficar olhando, literalmente olhando meu carro, uma pessoa que vai fazer nada se alguma coisa acontecer.
- Ei tiu, tava vigiando seu carro, tem um trocadinho pra'judá?
- Opa, tem sim, mas só pago se você me disser qual é o meu carro!
- Ah tiu, to cansando já, fiquei aqui o dia todo, é tanto carro que eu acabo esquecendo, mas nunca roubaram um carro aqui na minha rua!
Poxa, o muleque vigia carro e é dono de uma rua, só eu que não consigo juntar nada mesmo...
- E se um qualquer tentasse levar meu carro? Quem garante se ele te desse umas moedinhas você não ia deixar ele ir também?
- Ah, você não me perguntou isso tiu, você tem um BMW, vestido desse jeito e me faz uma pergunta dessa?
- Ué, só dou valor as minhas moedinhas!
- Não estou falando das moedinhas não tiu, to falando que quando você olha para alguém você sabe a intenção dela! Quem rouba, olha para os lados, fica tenso, e por mais que disfarce dá onda.
- Meu filho, tem malandro muito malando hoje em dia.
- Eu vivo na rua tiu, aprendi a ler as pessoas para poder viver, tenho que saber quando alguém me olha torto para não apanhar, saber quando meu pai tá bêbado para não cruzar na frente dele, pode ter malandro que é malandro como você disse, mas o Sr tá com uma cara de cansado, viajando, parece que tá pensando em muitas coisas, passou a mão na cabeça quando saiu do prédio, deve tá puto com algo que aconteceu, dai passou a mão na barriga enquanto deu olhada na rua procurando algum lugar para ir, isso é fome! Quem rouba carro pode parecer natural, mas não consegue disfarçar essas coisas que o Sr fez!
- Quantos anos você tem moleque?
- Muleque não tiu, é Glauber! Tenho 14!
- Já comeu hoje?
- O Sr quer saber se estou com fome? Opa, tô sim!
- Que tal um lanche, fritas médias e refri médio?
- Só se for agora! Mas você paga! Senão vai ter que voltar amanhã e me ajudar a vigiar uns carro!
Isso é bom, me deixa feliz, depois de um dia de trabalho, um stress no consultório médico, conheço um garoto desses, uma supresa, e diferente de tantas outras, uma supresa boa, minha hora de fazer algo para retribuir essa supresa.
- Grauber, sabe a diferença entre aproveitar a oportunidade e estragar a oportunidade?
- Opa tiu, estragar a oportunidade é quando patrão cola aqui na rua e amigo meu fala: - É R$10 pra vigiar o carro. Dai o patrão olha feio e num dá nada. Quando acontece isso eu digo algo do tipo: - Opa patrão, dia importante hoje?
- E funciona?
- Nem sempre, tem patrão que é mão-de-vaca, mas a maioria interage, e no fim fala: Toma tanto porque foi educado!
- E você aprendeu isso tudo com alguém?
- Claro que sim tiu, ninguém aprende nada sozinho, aprendi com a rua, ela me ensina uma coisa nova todo dia!
- Seguinte Grauber, meu nome é Bruno, mas pode continuar chamando de tio se quiser, escolhe logo seu lanche que ainda tenho que ir embora.
Fiquei feliz novamente em ver o guri comendo, todo dia eu como viajando, pensando em tudo que tenho que fazer, nos problemas a resolver, ele não, ele simplesmente está feliz por ter uma refeição, que apesar de fast-food, é tudo de bom para ele, gostaria de fazer mais.
- Você estuda?
- Hã, humm, ehh... sim...
- Que série?
- Eu tô na 8ª.
- Com essa idade?
- Ah, ehh...
Sabia, o olhar tenso quando eu fiz a pergunta, depois a resposta sem me olhar no olhos, não é só ele que sabe ler pessoas, a idade dele cabia muito bem na série que ele falou, mas eu peguei ele. Aquele garoto feliz agora não me encarava nos olhos, a refeição já não estava assim tão fantástica, a questão é, por quê?
- Que que foi Glauber?
- Nada não patrão.
- Agora virei patrão?
Nada, não saía mais nada do menino.
- Vamos, fale, te fiz uma pergunta rapaz! Tava falando pelos cotovelos até agora!
- A questão é o seguinte, eu não peço muito, só quero pra comer, não reclamo da vida porque sei que tem gente que vive pior, dai quando aparece uns figura igual você, fico feliz da vida, porque a grana que economizei do rango de agora pode virar uma roupa lá em casa, uma conta, mas vocês nunca conseguem ficar de boca calada, sempre fazem as perguntas erradas.
Nada, até agora nada, entendi o porquê dele estar encabulado, foi minha pergunta, mas isso era óbvio, não é a primeira vez que pago lanche para alguém e faço essa pergunta, mas sempre tenho a esperança de encontrar um que seja diferente, esse está perto, espero que seja quem eu estou procurando.
- Vamos, me fale, você tá bravo, já sei que foi pela minha pergunta, mas quero saber o que foi exatamente! Porque se fiz algo errado, eu te devo desculpas, mas caso contrário, você me deve desculpas.
- Porque eu te deveria desculpas? Acha que um lanche compra desculpas?
- Não, e você sabe disso, tá só se esquivando agora, você é criança, vive muito tempo na rua, mas é diferente e sabe disso, não me trate como trata os outros e eu não faço o mesmo com você, que tal? Vamos, me fala o que aconteceu?
- Você não tem nada a ver com minha vida tiu, eu quero estudar, nao quero ficar na rua, vejo as meninas bunita passar na rua, quem vai querer namorar com um muleque que vigia carro? Eu quero ter o meu carro, e dar moeda para os "trabalhadores" que vigiam carro, e dizer que eu já fiz isso um dia também.
- Bacana, muito nobre da sua parte, mas até agora eu ainda não escutei o que queria, porque se você quer estudar, podia ter falado isso...
- Eu menti tiu, eu menti, não é todo mundo que paga lanche não, e quando paga, dá o dinheiro para eu não ficar falando, e quando vem na lanchonete, senta em mesa separada, você foi gente boa, e eu menti para você, to puto com isso!
Bingo, meus olhos enchem de água, como pode a natureza ser tão perfeita? Nos ambientes mais improváveis, as mais belas formas de vida existem, ensinando o quão fantástico esse mundo pode ser!
- Então você está chateado porque mentiu para quem foi legal com você?
- É, é isso.
E ele não abaixou a cabeça, não ficou com vergonha, falou olhando nos meus olhos esperando a minha reação.
- Então você não me deve desculpas rapaz, eu que lhe devo desculpas, mas não pela pergunta que fiz, mas sim por ter feito você mentir, ainda que não fosse essa minha intenção!
Mas isso não recobrou aquela felicidade que ele estava quando começou a comer. Meti a mão no bolso e apertei o telefone do falso toque, o melhor aplicativo de celular do mundo, de todos mundos! Com um toque você faz o celular tocar, com um número aleatório aparecendo no display e tudo, melhor forma de sair de uma conversa indesejada.
- Oi... tudo tranqüilo, e você?... Bom também!... Não, o médico cancelou a consulta, dai estou aqui comendo um lanche com um amigo... firmeza, depois agente se fala.
Com o canto de olho eu fiquei observando ele, quando disse "amigo", ele não conseguiu conter no canto dos lábios um breve sorriso, que ainda não deixou ele feliz, mas certamente fez ele se sentir respeitado, considerado, parte de algo.
Me despedi do garoto, que ficou atrás falando que podia dar ré sem nem olhar para o carro, um bom garoto esse Glauber, quem sabe um dia eu volto para terminar isso. Chegar em casa, tomar banho e dormir, amanhã é um novo dia, espero que seja tão fantástico quanto esse.