Nada
como estar em casa! Cheguei de noite cansado da viagem, mas mesmo assim
não fui dormir, isso nunca acontece quando eu vou para casa dos meu
pais...
Toda família tem seus costumes, e na minha não é diferente. Meus pais
se casaram cedo, meu pai tinha 21 e minha mae era dois anos mais nova, e
mesmo sendo novos, decidiram tentar a vida longe de seus familiares.
Eles moravam no interior do Rio de Janeiro e vieram morar no interior de
São Paulo assim que casaram, quase 600 km de distante de todos seus
conhecidos.
Até hoje eu não sei o motivo deles terem feito isso, tudo que sei é que
todas as férias nós íamos para o Rio de Janeiro visitar a família, e
essa era uma rotina cansativa, mas impossível de se evitar. Logo cedo eu
também saí de casa, aos meus 17 anos fui para a faculdade, quase do
outro lado do estado, quando minha mãe perguntou se era mesmo
necessário, eu respondi que havia aprendido com os melhores, e assim
como um dia eles tinham saído de casa, eu também tinha que sair. E assim
como meus pais, todas as oportunidades que eu tenho eu volto para casa
para visitá-los.
Minha irmã preferiu não sair de casa, casou cedo e teve uma filha não
muito tempo depois, mora 5 minutos de distância dos meus pais, eles se
vêm quase todos os dias, então quando eu coloco meus pés em casa,
normalmente ela já está a minha espera com o marido e filha.
Por isso que disse que eu nunca durmo quando chego em casa, pois
primeiro tenho que contar todas as novidades, depois ouvir todas as
novidades, fico sabendo das fofocas da vizinhança, das pérolas
protagonizadas pela minha mãe, das peripécias da minha linda sobrinha e
outras coisas mais.
Depois de muita conversa e muita risada, minha irmã foi embora e eu fui
dormir. Meus pais moraram quase a vida inteira em casa térrea, no
entanto quando ficaram um pouco mais velhos resolveram comprar um
apartamento por questões de segurança, um belo apartamento por sinal,
por isso quando eu vou visitá-los eu ainda consigo ficar na cobertura,
com direito a piscina no quarto e vista para a serra, realmente
relaxante.
Acordei perto das 9h no sábado, minha mãe estava terminando de preparar
o café da manhã, minha irmã já estava novamente em casa ajudando na
cozinha, enquanto meu pai e cunhando assistiam desenho na televisão
junto com minha sobrinha.
Eu tinha notado olhares trocados entre minha mãe e irmã no dia
anterior, mas não me importei, segredo é algo que não existe nesta
família, todo mundo é muito fofoqueiro e as notícias vazam rapidamente,
sabia que não precisaria apertar nenhuma das duas, pois logo a
informação chegaria aos meus ouvidos. A refeição matinal acabou e
ninguém comentou nada, achei melhor ignorar a questão, ainda que achasse
que haviam olhares sendo trocados, pensei que pudesse ser imaginação
minha, apesar de saber ler muito bem minha família, não seria a primeira
vez que eu estaria enganado.
Aproveitei a oportunidade para conversar bastante com meu pai, ele é
comerciante e está sempre trocando idéias sobre quais os passos a tomar e
compartilhando suas vontades. Ele sem dúvida é uma das pessoas mais
competentes que já conheci, e olha que tive a oportunidade de trabalhar
com pessoas estudadas e que vieram de diversos cantos do mundo, eu nem
saberia explicar como ele conseguiu fazer tudo o que fez, só sei que ele
não tinha instrução o suficiente, não tinha estrutura, apoio ou
dinheiro, mas do nada ele levantou um grande comércio, hoje conta com
mais de cinquenta funcionários espalhados por quatro lojas em duas
cidades. Apesar de não saber como ele fez tudo isso, talvez esse tenha
sido o maior segredo do meu sucesso profissional até o momento, ele me
fez acreditar que eu podia fazer o que quisesse, pois ele tinha
conseguido, e eu, sendo filho, era dotado das mesma capacidades. Ele
nunca me disse essas palavras, e provavelmente nem fazem sentido, mas o
que importa é que eu sempre acreditei e as coisas funcionaram para mim.
Na hora do almoço, enquanto todos estavam comendo, mesmo de cabeça
baixa eu pude perceber minha irmã olhando para a minha mãe novamente,
então apenas levantei a voz e falei: “Eu posso esperara vocês decidirem
falar o que quer que queiram falar, mas estou começando a ficar sem
paciência e vocês sabem que eu posso ser muito bom em arrancar
informações de vocês se eu quiser”. Nesse momento meu pai só colocou um
sorriso no rosto e continuou comendo.
Minha mãe, como sempre, foi quem começou falando.
“Sabe Bruno, você é um homem inteligente, bem sucedido, que se veste
bem, é educado... então eu estava conversando com sua irmã e decidimos
que vamos arrumar uma namorada para você”.
Era só o que me faltava, de tempos em tempos elas retomam esse assunto,
e eu sempre me estressava, mas no fim acalmava os ânimos antes de
explodir, afinal de contas não fazia sentido compartilhar pensamentos
que só trariam mais preocupação.
“Isso Bruno, - completou minha irmã - vai ter uma festa semana que vem, tipo
um baile, e já estou espalhando entre algumas conhecidas que você vai
estar aqui, e você sabe que todas são curiosas para te conhecer por
conta das histórias que eu e minha mãe contamos sobre você”.
Alcoviteiras, isso sim! Por costume as chamava de mãe e irmã, mas eram
na verdade alcoviteiras e amigas da onça. Eu tentei puxar o discurso
padrão, de que não era tão simples assim, que relacionamento não era um checklist que você marcava as características das pessoas e encontrava o amor por uma fórmula, era muito mais complexo que isso.
Claro que eu também já sabia o discurso que seria adotado por elas.
Primeiro começariam dizendo que eu era muito fechado, que eu não dava
oportunidade, depois iriam falar que sendo eu tão inteligente, tendo
lido tantos livros, não é possível que não tenha aprendido nada sobre as
pessoas, e como só é possível entrar em um relacionamento conhecendo
novas pessoas e se arriscando, e por ai vinham outros discursos
decorados.
A tarde chegou, acabou o almoço mas o assunto não, ainda estavam
falando pelos cotovelos, nesse momento minha irmã já estava com um tablet
na mão mostrando fotos de amigas no facebook. Algumas eram bonitas,
outras nem tanto, mas todas com seu certo encanto, ainda que nenhum
parecesse me afetar.
Vez ou outra se escutava a voz do meu pai, hora para me defender e hora
para me atacar, mas sempre para fazer todos rirem, todos seus
comentários eram cômicos, nem eu conseguia manter a seriedade nesses
momentos.
Existem certos momentos que você pensa se deve se abrir totalmente e
deixar cada um se virar sozinho, ou continuar tomando as porradas que as
pessoas te dão e apenas respirando fundo. Eu costumo seguir a segunda
opção, sempre falava para uma amiga minha que eu era feito de um
material mais resistente do que os outros, então não me importava de
apanhar, pois pelo menos eu sabia que aguentava, o mesmo não poderia
garantir para todos.
Mas hoje seria diferente, hoje eu resolvi falar um pouco como eu me
sentia, sobre o que se passava na minha cabeça e a forma como era minha
vida.
“Mãe, eu agradeço sua preocupação, sério mesmo, de todo meu coração,
afinal de contas que tipo de mãe você seria se não se preocupasse
comigo? No entanto existem coisas a meu respeito que talvez nenhum de
vocês tenham idéia, seja porque vocês não reparam em nada ou seja porque
eu sou muito bom em esconder. Eu sou diferente, e antes que pensem que
eu tenho opções sexuais diferentes, quero deixar bem claro que eu gosto
mesmo é de mulher, muito por sinal...”
“Acontece que nem tudo deu certo para mim como vocês pensam, o Fábio -
marido da minha irmã - uma vez me perguntou se eu não chorava, queria
saber como eu aguentava a pressão as vezes, eu disse que tinha um alto
limiar de dor, mas era mais do que isso, eu praticamente já tinha
esquecido da dor, de tão presente que ela está em mim, e portanto isso
deixou de ser uma desvantagem e passei a usar a meu favor. Eu não
consigo me conectar com pessoas porque elas não me compreendem, elas não
sentem a vergonha que eu sinto quando eu vejo uma pessoa pedindo esmola
na rua, ou quando eu vejo uma pessoa sem uma perna e eu reclamo que
estou cansado de ficar de pé, as pessoas acham isso bobagem, e acabam
esquecendo desses detalhes, mas comigo é diferente, eu tenho um cérebro
que não me deixa esquecer que eu sou, como sou, como os outros são, e
constantemente me lembra o quão pouco eu faço com tudo que tenho.”
“E mesmo quando eu consigo disfarçar tudo, para tentar viver neste
mesmo mundo que todo mundo vive parecendo não me importar, não enxergar
as verdadeiras dificuldades que o mundo oferece, eventualmente eu
encontro uma mulher, que me atrai, que me faz sentir o desejo de estar
com ela, e eu arrisco me envolver. Mas eu gosto de jogar xadrez, e gosto
de exergar tantos movimentos quanto possível na frente do oponente, e,
associado com minha habilidade de programar e encontrar padrões lógicos
em rotinas e comportamentos, em pouco tempo eu consigo enxergar essa
mesma pessoa que hora era interessante, como alguém previsível, e
portanto não mais interessante. Essa mesma mulher, no entanto, me vê
como um cara que a compreende, que sempre está prevendo seus passos e
facilitando sua vida, e acha que encontrou o cara da vida dela.”
“Eu, por outro lado, já estou carregando um fardo, estou jogando um
jogo que já terminei e não me trás mais desafios, uma partida em que o
adversário já não tem mais condições de me surpreender. Nesse momento as
coisas acabam, eu sou frio, pois é isso que sinto no momento, a garota
não entende, fala tudo que pode de ruim ao me respeito e, por fim, passa
a me odiar.”
“Nesse momento, quem se odeia já sou eu, afinal de contas, que tipo de
homem se acha prepotente o suficiente para pensar como eu penso? Que
tipo de criatura trata outras pessoas que estão envolvidas
sentimentalmente como se fosse um jogo? Eu não sei, porque não conheço
nenhuma outra, só sei que repudio todas elas, ainda que nessas situações
eu seja a própria criatura. E isso ninguém entende, por isso, ao longo
do tempo, eu passei a tomar cuidados para que ninguém percebesse, afinal
de contas, não faz sentido se comunicar com alguém em um idioma que a
pessoa não entende.”
“E eu já passei por este ciclos mais de uma dezena de vezes, talvez
mais de duas dezenas, e o desfecho final sempre é o mesmo. Hoje já não
sinto, também não me importo, pelo menos não comigo, e não fosse pelo
tanto que me importo com os outros, seria a perfeita definição de um
sociopata, mas não se preocupem, já fui ao médico e fiz os testes
necessário para garantir que esse não é meu caso.”
“Se vocês tivessem a menor idéia da sensação que é participar sem o
sentimento de pertencer, saberiam o quão desesperador é estar cercado a
todo momento, observar as interações, entender perfeitamente como elas
funcionam, e exatamente pelo fato de entender, temer que possivelmente
você jamais se conectará da mesma forma que os demais.”
“Mas não se preocupem comigo, os primeiros anos foram os mais difíceis,
mas até mesmo uma guerra, depois de mais de 10 anos batalhando, se
torna uma rotina amarga que você já aceita como parte da sua vida.”
Eu queria que eles entendessem como eu me sinto, mas jamais conseguiria
colocar em palavras o sentimento de não pertencer, não participar, não
se conectar, quase como se fosse uma casca vazia, oca por dentro.
Minha mãe estava chorando, meu pai com os olhos vermelhos, minha irmã
me pedia desculpas, o marido dela dormia e minha linda sobrinha estava
distraída servindo chá para suas bonecas.
Eu já me arrependia de cada palavra pronunciada, um clima de velório
pairava sobre a casa, definitivamente não estávamos em um clima de
páscoa, e nenhuma palavra que eu pronunciasse seria capaz de reverter
isso.
O pior de tudo, é que ao alongo do dia agora eu reparava na troca de
olhares entre meus pais, meu pai com olhar vago e minha mãe se
lamentando com ele, como se a minha situação fosse culpa deles, algo que
ela teria feito de errado, algum ensinamento não repassado, um abraço a
menos que foi dado enquanto eu era criança. Eu tentei explicar para os
dois que aquilo não me incomodava, eles tinham tido um filho forte, que
estava acostumado com a vida e com os fardos que carregava.
O que mais me incomodava era o meu egoísmo, eu sabia que tinha falado
tudo isso só para calar a boca deles sobre as conversas sobre namoradas,
eu tinha sido egoísta, coloquei minha vontade na frende da deles, e por
isso agora eu ainda estava com os mesmos problemas, e todos eles com um
problema mais, e não há nada que me irrite mais do que machucar minha
família, o maior problema era que neste momento o culpado e portanto
foco da raiva, era eu mesmo.
Uma pessoa enraivessida pode fazer besteiras, se for consigo mesma
então pode ser mais perigoso ainda, visto que as vezes a sensação de que
você será o único faz com que você exagere um pouco, pois acha que
ninguém mais será afetado pelas suas ações. No entanto eu não sou trouxa
a ponto de fazer uma grande besteira, jamais agrediria meu corpo ou
colocaria minha vida em risco, eu amo a vida, e jamais abrirei mão dela.
Em momentos que eu me sentia assim, por vezes perdia a consciência, e
isso significava que eu não me importaria com o que iria fazer, agiria
com o menor pingo de remorso e certamente me arrependeria depois. No
domingo, ainda com clima de velório na casa dos meus pais, me despedi e
voltei para minha cidade.
Quando
entrei no apartamento vi o tal cara que havia convidado a Júlia para
sair deixando ela no portão, ela entrou correndo e chorando. Assim que
entrei no meu apartamento eu peguei meu celular e pensei em ligar para a
Júlia para saber o que havia acontecido, eu sabia o bem que poderia
fazer para ela, eu era muito bom em confortar pessoas em situações
assim, ainda que eu não tivesse a menor idéia do que estava acontecendo.
Pensei por cerca de dez minutos, finalmente resolvi fazer uma ligação, dez minutos depois minha campainha toca.
“Pensei que você não viria”
“Nossa, bonito apartamento, do outro lado ele não parece tão grande assim”
Ela
estava com um short jeans curto com as pontas desfiadas, uma blusa
branca colada no corpo que realçava o formato dos seis, mas o que mais
me chamava a atenção eram os cabelos vermelhos. A vizinha que da sacada
parecia uma menina, tinha um corpo de mulher, e não teria aceitado o
convite pelo telefone se realmente não fosse.
Eu
sabia que iria me arrepender do que estava fazendo, mas verdade é que
naquele dia eu precisava relaxar, a Júlia só me traria mais dores de
cabeça no momento, meu sub-consciente tentava me convencer que ela
também tinha acabado de ter uma noitada com o cara do trabalho. E eu
estava prestes a ter a minha.